De tempos em tempos, surgem ondas de boicotes à Netflix. Elas emergem de consumidores que não concordam com a manipulação das narrativas, o fim de uma série favorita, o aumento do preço da assinatura ou de atores insatisfeitos com a remuneração das produções originais da companhia
Conceituados diretores não apreciam o formato da plataforma e até a indústria cinematográfica tece suas críticas por se ver cada vez mais enfraquecida na competição entre o cinema e o streaming. Mas a realidade é que poucos negócios ostentam uma escalada tão impressionante quanto a da Netflix. Ela fechou o balanço do ano passado com 117 milhões de usuários, o dobro de três anos antes ou cinco vezes mais do que em 2011. Nada mal para uma empresa que surgiu para alugar filmes pelo correio.
Onde os cinéfilos enxergam produções culturais, a Netflix vê números. Parte de seu sucesso é exatamente por ser da indústria de tecnologia e não do entretenimento. Ao ganhar escala planetária devido ao streaming digital, a empresa criada em 1997 pelo americano Reed Hastings vem rivalizando com o negócio do cinema. Não bastava mais adquirir filmes de catálogos como se fosse uma locadora virtual, sobretudo em meio à inevitável chegada dos concorrentes – como hoje existem a Amazon, o Hulu e a Fox. Em 2013, a Netflix passou a produzir conteúdo original e lançou a série House of Cards, que arrebatou três Emmys, o principal prêmio da televisão americana. O sucesso levou à produção de outras obras originais, como Narcos, Stranger Things, Orange is the New Black.
A televisão vive do Ibope, a forma que se convencionou chamar a audiência das emissoras. Mas na Netflix essa informação é um segredo de Estado. Dentro da plataforma, os milhares de títulos aparecem na tela segundo o algoritmo desenvolvido para satisfazer cada consumidor. Hastings, em sua última visita ao Brasil, afirmou que a sua missão é “fazer o melhor que podemos para que sua experiência seja fácil, conveniente e que também entretenha”. Essa combinação de tecnologia, marketing e conteúdo tem gerado resultados que provocaram uma reviravolta na indústria do entretenimento.
A cultuada revista francesa Cahiers du Cinéma, em sua esperada edição de dezembro de 2017, elegeu a terceira temporada do seriado Twin Peaks (disponível na Netflix), o “melhor filme do ano”. Foi o suficiente para aquecer os debates entre cinéfilos. Como pode um produto televisionado ser reconhecido entre as melhores produções da indústria cinematográfica? Na opinião de Cássio Starling, crítico de cinema da Folha de S. Paulo, a distinção entre TV e cinema será cada vez menos importante. “A tendência é que as salas de cinema se tornem exclusivas para exibição de obras que exijam imersão, experiências únicas”, reflete. “Já o streaming é de tudo a qualquer hora. Muitas obras que estão lá disponíveis podem ser vistas no metrô, no carro etc.” Arcar com uma mensalidade e ter acesso a milhares de filmes é bem mais barato que pagar uma entrada de cinema ou comprar DVDs e Blu-Rays.
Com a emergência do cabo nos anos 1980, as produções para a TV passaram a ousar mais. Temas como sexualidade, violência e drogas se tornam frequentes e foram criados programas para nichos. As primeiras temporadas de Twin Peaks (1990-91) são reverenciadas até hoje. Mas Starling recomenda cuidado ao se destacar a obra. “Nesse universo da grande produção não existe essa ideia de obra revolucionária. Twin Peaks é fruto de uma série de rupturas, uma evolução, cuja semente identifico em Chumbo Grosso, de quase uma década antes. Nesse aspecto, Twin Peaks: O Retorno parece ter encontrado um meio termo dentro da plataforma de streaming. Nas duas primeiras temporadas, a série soube contar uma história que passeava entre o autoral de David Lynch e o melodrama. Mas 25 anos depois a estratégia foi outra. Sem colocar os ganchos em segundo plano, o diretor buscou contar a história com vagarosidade. Há quem veja nos novos caminhos de distribuição, produção e consumo a ampliação para outras formas de narrativas.
Em 1922, o que impediu a primeira versão de Ouro e Maldição, de Eric von Stronheim, de chegar aos cinemas foi o tamanho: seu primeiro corte tinha quase oito horas de duração. Para Marco Vale, documentarista e professor da Cásper Líbero, Stronheim estava à frente de sua época. “Com o passar dos anos, esse tipo de narrativa prolongada, que está mais próxima da literatura que do teatro, encontrou um espaço perfeito nos seriados”.
Ficar tanto tempo em frente a uma tela já não parece ser mais um problema. Proporcionar que o espectador tenha controle total de como e quando assistir faz toda diferença. As maratonas eram práticas que já existiam desde o lançamento de boxes de temporadas em DVD e hoje são ainda mais comuns, lembra Marco Vale. A própria estratégia de lançamento favorece esse tipo de comportamento: as plataformas disponibilizam todos os episódios de uma vez, normalmente próximo do fim de semana, para que o usuários tenham tempo de assistir ao conteúdo.
Se o destino das séries parece estar bem encaminhado, o do cinema nem tanto. Para Luiz Zanin, crítico de cinema do Estadão, o streaming acompanha a lógica contemporânea de consumo rápido. Os serviços são ainda deficitários no atendimento a públicos diversos, especialmente aos interessados em uma visão crítica. “O fato é que você não encontra tudo, nem mesmo em DVD. E o que as plataformas de streaming oferecem não consegue se sustentar como biblioteca, porque o catálogo é rotativo”, afirma.
Marco Vale destaca o papel do streaming em disponibilizar produções menores para um público maior. “Ao mesmo tempo que descubro produções independentes, vejo muitas lacunas. Como pesquisador e produtor de audiovisual, sinto falta dos extras”, pontua, referindo-se a materiais como making of. Para o professor, a tendência é que surjam mais streamings para atender outros nichos.
O também crítico de cinema Pablo Villaça publicou contra a Netflix em seu blog Cinema em Cena. Devido a série O Mecanismo, de José Padilha, que trata de forma ficcional e deturpada a história da Lava-Jato, Villaça anunciou que cancelou a assinatura do serviço de streaming. Um de seus argumentos é o de que para esse modelo de negócios “o que importa não é a qualidade do produto, mas a quantidade”. São 679 documentários, sendo que 624 foram produzidos de 2010 em diante. Dos cerca de 4 mil títulos oferecidos pela Netflix Brasil, só 69 são produções anteriores a 1985. Quem quiser ver um filme clássico terá grandes dificuldades.
Mas, pelo visto, a Netflix e demais empresas de streaming continuam querendo ditar as regras da indústria.
A empresa já têm capital suficiente para investir em produções próprias ofertando orçamentos dignos de uma grande produtora, como Okja, de Bong Joon-Ho, e Os Meyerowitz: Família Não se Escolhe, de Noah Baumbach. O problema é que esses conteúdos somem no limbo digital. Em entrevista à Variety, o diretor do Festival de Cannes Thierry Fremaux afirmou que, infelizmente, Okja e Os Meyerowitz não tiveram destaque e perderam-se nos algoritmos da Netflix. “É triste porque são lindos filmes. Mas vamos entender que a história do cinema e a história da internet não são a mesma coisa”, disse. Neste ano, como uma forma de enfrentar a lógica do streaming, o celebrado Festival de Cannes barrará os filmes da Netflix enquanto não abrirem mão de disponibilizá-los de pronto na plataforma para estreá-los por um período nas salas de cinema. Essa briga está apenas começando.