Por Guilherme Guerra
Cásper

Os três lados da Cásper

O legado do jornalista continua sob os eixos que mais preservou em vida: o patriótico, o jornalístico e o cultural

Em 15 de março de 1943, a voz grave de Cásper Líbero proferiu algumas palavras na recém-inaugurada Rádio Gazeta. Aos 54 anos, o jornalista, empresário e dono da nova emissora de São Paulo discursava tão bem quanto uma figura política. Com os erres fortes, os esses sibilantes, as pausas e a perfeita clareza do que se é dito, ele mantinha a dicção comum aos melhores oradores da época. “A Rádio Gazeta empreenderá o melhor dos seus esforços para se transformar em uma emissora digna da nossa cultura, do nosso civismo, das nossas tradições e, sobretudo, da nossa responsabilidade que pesa sobre todo o Brasil nesta hora grave e triste da humanidade”, definiu.

O acirramento da Segunda Guerra Mundial não impediu que Cásper Líbero expandisse seus negócios. Visionário, o empresário já possuía uma rede de jornais e de contatos pelo Brasil, Estados Unidos e Europa quando decidiu comprar uma decadente rádio educacional para, anos depois, transformá-la em uma prestigiada emissora de radiodifusão. Foi ainda presidente do Clube dos Proprietários de Jornais, que tinha como associados O Estado de S. Paulo e A Folha da Manhã. Foi também agente da Política da Boa Vizinhança, encabeçada pelo vice-presidente norte-americano Nelson Rockefeller (de quem era amigo) para estreitar a relação entre EUA e América Latina naqueles conturbados anos. Mas a menina dos seus olhos continuava a ser A Gazeta, “um jornal considerado por todos os jornalistas uma organização modelar”, como rememorou na inauguração da rádio. “Mas jornal é bem diferente de uma estação de rádio”, e a Rádio Gazeta logo foi conduzida “às suas finalidades intelectuais, artísticas e patrióticas”.

Nos anos 1940, a emissora Gazeta era a “rádio de elite”, como frisava seu slogan, com uma programação inédita de ópera e música erudita transmitidos em cadeia nacional. Desde janeiro de 1943, o jornalista consultava sua mulher (Dona Maggy, com quem ficou por 18 anos) e amigos para pensar a produção de um testamento. Sem filhos e sobrinhos e sem ter se casado no papel, Cásper preocupava-se em manter um império jornalístico e assegurar o crescimento de seu patrimônio.

Em 16 de março, o testamento de Cásper Líbero foi redigido, deixando seus imóveis a Dona Maggy e o restante para a criação de uma fundação, baseada em uma tríplice finalidade: “patriótica, cultural e jornalística”. Esses objetivos nortearam a vida de Cásper. Da parte patriótica, o jornalista combateu o regime getulista – não com armas, mas por oposição com o jornalismo de trincheira de A Gazeta. Da cultural, foi grande entusiasta dos esportes, incentivando e promovendo diversas competições em São Paulo. Da parte jornalística, foi pioneiro na cobertura especializada brasileira com A Gazeta Esportiva, modernizou jornais e teve participação decisiva na criação da primeira escola de jornalismo do país, a Cásper.

1ª parte: O patriota

Em 2 de março de 1889, Cásper Líbero nascia em Bragança Paulista, e em 15 de novembro, a República brasileira. A relação com a política fez parte da vida dos Líberos. Vindo da cidade vizinha Itabina, o pai e médico Honório Líbero envolveu-se com a política local bragantina em defesa dos republicanos. Com os monarquistas às vésperas do novo governo, envolveu-se em uma troca de raivosos artigos de jornais. A mãe, Zerbina de Toledo, foi filha do Capitão Toledo, figura política da cidade acusada de hospedar um republicano em sua casa – o próprio sogro, recém-casado com Zerbina e sem casa para morar. De Zerbina e Honório, nasceram os futuros médicos Nelson (de 1884) e José (de 1886), irmãos de Cásper.

O envolvimento de Honório com a causa republicana foi tão grande, que o médico recepcionou sob seu teto os futuros presidentes Bernardino de Campos e Campos Sales, então em marcha pelo Brasil. Na pequena Bragança, o reconhecimento logo veio e o primeiro Líbero foi convidado em 1888 para inaugurar a presidência do Clube Republicano de Bragança, de vida curta graças ao breve fim do Império.

Foi nessa agitada Bragança da Primeira República que Cásper cresceu. Mas o menino teria boas memórias da infância, como as partidas de futebol na rua e seus tempos no colégio, onde era elogiado por suas belas descrições de quadros. No quarto ano do primário, recebe nota máxima e é escolhido para ser o orador da turma, aos 10 anos. “Como ato de marotice, eu surpreendi aos mestres e pais de meus amigos presentes à formatura, quando no momento da colação, em que eu deveria ser o orador, saquei de minhas próprias palavras e fiz um discurso de improviso”, relembrou em texto de A Gazeta.

Na virada do século 20, os Líberos se mudam para São Paulo para atender a um chamado profissional de Honório, médico dedicado que atendia os pacientes sob sol ou chuva. Escolheram o bairro de Campos Elíseos para morar, e lá também estudaram os garotos. Desde aquele tempo, Cásper parecia predestinado ao jornalismo, pois assim atestava o vice-diretor do Liceu em que estudava: o garoto teria futuro nas letras. O rapaz enveredou-se pela tradicional Faculdade do Largo do São Francisco, a SanFran, cursando ciências jurídicas e sociais. Fez parte da Campanha Civilista para o candidato à presidência Ruy Barbosa, seu ídolo ao lado do chanceler Barão do Rio Branco, hoje patrono da diplomacia brasileira. A seu contragosto, ganha o candidato militar Hermes da Fonseca.

Formado bacharel em dezembro de 1909, Cásper mal exerce a profissão, passando brevemente pelo cargo de Procurador da Fazenda do Estado do Mato Grosso. Logo abandonou a vida de servidor público para procurar terra firme na maré incerta do jornalismo.

 

2ª parte: o jornalista

Até 1947, não existia um curso de formação para jornalistas reconhecido oficialmente. Nem no Brasil, nem na América Latina. A profissão era exercida livremente. Bastava entrar em uma redação, pedir um emprego e aprender na marra. Eram necessários a boa escrita e o interesse pela vida pública, requisitos que ainda hoje são essenciais na profissão. Cásper Líbero possuía os dois, mas havia algo mais: o espírito empreendedor.

Ao longo da vida, pouco trabalhou para um jornal que não fosse seu. No Rio de Janeiro, com amigos fundou em 1911 o vespertino Última Hora, de vida curta, mas bastante combativo ao marechal Hermes da Fonseca, cujo governo foi marcado por rebeliões em todo o país, como a Revolta da Chibata (1910), quando marinheiros, a maioria negros ou mulatos, se amotinaram contra as más condições a que eram submetidos. A experiência com o Última Hora foi o primeiro flerte de Cásper com o jornalismo. Foi também a primeira tentativa de oposição política feita pelo bragantino.

O jornalista fundou também a pioneira Agência Americana, que durou de 1913 a 1914, e trouxe notícias do exterior para o Brasil. Pouco depois, diversas outras agências semelhantes nasceram ou chegaram ao país. Ainda capital da República, foi diretor da sucursal carioca de O Estado de S. Paulo, por indicação de Júlio Mesquita.

O sucesso, porém, veio com A Gazeta, já de volta a São Paulo. Cásper recebeu a proposta de compra do jornal. Tinha apenas 29 anos. Caso a compra fosse mal-sucedida, quem arcaria com os custos seriam os irmãos mais velhos, Nelson e José, médicos com carreira estabelecida em São Paulo. Em 16 de maio de 1918, A Gazeta ganhava um novo dono, que lhe modernizaria e transformaria no mais importante jornal paulista das décadas de 1920 e 1930. Até lá, Cásper e sua nova equipe tiveram de reformular o projeto gráfico, as rotativas, os repórteres e as coberturas. O que não mudou foi a posição política: uma publicação profundamente republicana, aliada do Partido Republicano Paulista (PRP).

Tanto A Gazeta quanto Cásper foram republicanos desde o berço. O jornal nasceu em 1906 sob os cuidados de Adolfo Araújo, poeta e jornalista pró-republicano. A tradição foi mantida e a campanha presidencial de 1930 teve participação d’A Gazeta em favor do candidato do PRP, Júlio Prestes, oponente de Getúlio Vargas. Em fevereiro, o jornal afirma: “Votar em Júlio Prestes é votar pela felicidade do Brasil e da República.”

 

Em 24 de outubro do mesmo ano, às 14h25, sem aviso, uma chuva de pedras atinge a redação d’A Gazeta, no Edifício Médici da Rua Líbero Badaró. Não há feridos, somente a própria redação, que ficou em inércia por 3 semanas sem circular o jornal, e também a rotogravura e a Sereia. Esta foi a perda mais simbólica. O relógio, conectado a uma sirene vinda da França em 1915, anunciava todo meio-dia (tradição mantida até hoje, na Avenida Paulista) mais uma nova edição de A Gazeta. Como lembrança pela perda da Sereia, Cásper Líbero jamais permitiu que o relógio fosse consertado – e assim ficou marcado para sempre o horário do ataque.

Atribuem-se as pedras à oposição getulista, insatisfeita com o posicionamento da publicação. Como se destino não fosse trágico o suficiente, naquela mesma rua havia um século, Líbero Badaró fora assassinado, tornando-se o primeiro jornalista morto por seus escritos na história do Brasil.

Em 1932, um novo ataque eleva A Gazeta a jornal-símbolo da Revolução Constitucionalista. Fora os empastelamentos atribuídos à base getulista, outro marco foi a publicação do poema-manifesto de Ibrahim Nobre na capa do jornal no aniversário de São Paulo. “No entanto, do Norte, do Sul, de toda a parte, os homens se levantaram para a luta! Pelo Brasil? Por uma Pátria melhor? Por dias mais claros? Não! Foi contra ti, São Paulo!”, dizia o texto. Cásper tinha o faro para saber o efeito de tal ousadia editorial e não sacrificaria a credibilidade de seu jornal diante da opinião pública. A Gazeta reinventada por Cásper Líbero representou a mentalidade do paulistano, que saltava de mera província a um dos maiores centros industriais da América Latina. No início do século 20, São Paulo possuía 200 mil habitantes e 40 anos depois mais de 1,3 milhão.

3ª parte: o cultural

Cásper sempre foi um homem do mundo. De 1930 a 1934, o empresário se exilou no exterior, deixando as funções de diretor d’A Gazeta. Foi quando ele processa o governo brasileiro e recebe uma indenização pelos empastelamentos de seu jornal. O dinheiro ganho na causa foi reinvestido no veículo. O jornalista sempre reutilizava os lucros da publicação para manter as inovações feitas em sua equipe e jornal.

O empresário era, ainda, um homem de ideias criativas. Na final da Copa Sul-Americana de Futebol, que aconteceu em 1922 no Rio de Janeiro, não havia rádio e muito menos televisão que transmitisse a partida para os paulistanos. A solução encontrada foi simples e genial. Cásper Líbero mandou instalar um telefone no estádio do Rio de Janeiro, que esteve conectado aos novíssimos auto-falantes instalados no Vale do Anhangabaú, no centro de São Paulo. Diretamente do Rio, o próprio jornalista narrava a final do campeonato entre Brasil e Paraguai para os milhares de paulistanos abarrotados no local. O jogo terminou com uma goleada de 3 a 0 para o Brasil.

Esse foi o pontapé para iniciativas como A Gazeta Esportiva, que saiu de coluna semanal d’A Gazeta em 1918 e transformou-se em publicação independente em 1947. A paixão do Brasil por esportes e o relacionamento entre jornalismo e cobertura especializada levaram A Gazeta Esportiva a vender 500 mil exemplares em 1970 após a Copa do Mundo no México, marca que só foi ultrapassada pela Folha de S.Paulo nos anos 1990.

Outra inovação vinda do jornalista foi o Palácio da Imprensa, então o único prédio do país a ser inteiramente dedicado a redações de jornais – todos oriundos de A Gazeta. A sirene do meio-dia foi transportada para o novo edifício, e o auditório do Palácio da Imprensa foi onde os primeiros alunos da Escola de Jornalismo Cásper Líbero tiveram aula. Hoje, o prédio localiza-se na atual Avenida Cásper Líbero, em São Paulo.

Cásper era conhecido por ser excelente anfitrião. Seu escritório dispunha de cadeiras e café de alta qualidade. O bragantino nunca redigia seus textos. Preferia ditar para sua secretária enquanto andava de um lado para o outro da sala. Era no escritório, do Rio ou de São Paulo, que trocava cartas e marcava encontros com diversos figurões. Walt Disney foi um deles, e Cásper ganhou um boneco de Zé Carioca, mais novo personagem do universo animado e dedicado ao público brasileiro. O jornalista era um grande admirador dos Estados Unidos, e logo a potência norte-americana viu nele uma forma de reaproximar um Brasil que tendia para um apoio ao Eixo durante a Segunda Guerra.

Em 1942, o Escritório de Assuntos Interamericanos escolheu A Gazeta e seu suntuoso Palácio da Imprensa para gravar um documentário de 10 minutos sobre o cotidiano do jornal, intitulado “Brazil Gets the News”. Com narração em inglês, Cásper Líbero aparece no início, posando ingenuamente para câmera enquanto se vê ocupado com papéis. Já estava com sua “marca registrada”, que ficaria para a posterioridade: a careca, o terno e os óculos de aros redondos. Na “Detroit do Brasil”, as imagens apresentam a “casa de um moderno jornal” e, como todo jornal “em bom estado”, há um editor. O próprio Cásper.

Logo após o filme, Cásper e uma comissão de jornalistas foram convidados a visitar os Estados Unidos durante o período natalino. O bragantino recusou a proposta. Não por desinteresse, mas por acreditar que o Natal devia ser passado com a família. A viagem aconteceu em maio de 1943, e os relatos foram todos publicados em agosto daquele ano, em que o jornalista enalteceu o aparato bélico e a imprensa norte-americanos.

Cásper era ainda um grande companheiro, segundo relatos. Sua generosidade com funcionários foi mais de uma vez lembrada. Certa vez, sabendo que um funcionário estava para se casar, estacionou em frente à redação um carro zero quilômetro e, após interminável suspense, revelou que o veículo era um carinhoso presente do chefe para o seu subordinado.

Em uma das típicas viagens Rio-São Paulo, Cásper Líbero embarcou em um vôo com o Arcebispo de São Paulo, Dom José Gaspar. Quando estão para sair de Congonhas, o jornalista perguntou: “Então, dom José, afinal vamos hoje para o céu?” Confabulação ou não, a frase antecipa o trágico destino de ambos naquela manhã. Sob uma densa cerração no Rio de Janeiro, a asa do avião da empresa estatal Vasp, com seus 18 passageiros, chocou-se contra o prédio da Escola Naval e mergulhou nas águas da Guanabara, em torno das 9 horas da manhã de uma quarta-feira do dia 27 de agosto de 1943. Cásper e D. José morreram no acidente.

Epílogo

Pouco menos de um ano após a morte de Cásper Líbero, em 10 de agosto de 1944, a Fundação Cásper Líbero foi criada, presidida por seu irmão mais velho, Nelson. O testamento ganha vida. Dizia o texto: “objetivo cultural de criar e manter uma escola de jornalistas e ensinamentos de humanidades, particularmente português, prosa, estilo, literatura, eloquência, história e filosofia, em cursos de grandes proporções, a começar pelo secundário e finalizar pelo superior”. Seguindo as vontades de Cásper, em 16 de maio 1947 criou-se, após muitos entraves com a burocracia vigente, a Escola de Jornalismo Cásper Líbero, a primeira do Brasil e da América Latina.

O início da faculdade esteve ligado à Faculdade de Filosofia de São Bento, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), que cedeu o espaço físico para as aulas e também emitiu os diplomas para os formados. A parceria durou até 1972, quando a Faculdade Cásper Líbero já estava na Avenida Paulista há seis anos. Se no ano de estreia eram 42 alunos matriculados, hoje são 2.500 estudantes que serão bacharéis em Comunicação Social.

O corpo de Cásper Líbero foi sepultado no Cemitério da Consolação e depois transferido para o Obelisco de São Paulo, monumento em frente ao Parque do Ibirapuera dedicado aos combatentes da Revolução Constitucionalista de 1932. Tanto por A Gazeta quanto por ser figura central na história de São Paulo, parece apropriado que Cásper seja lembrado como combatente – um ferrenho defensor da liberdade de expressão.

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