A diversidade se faz cada vez mais presente nos processos comunicacionais, mas ainda há um longo caminho até que a representatividade da sociedade não fique só no discurso
Diversidade, na ecologia, é definida como o conjunto formado pelos ecossistemas, pelas espécies, pelas populações ou pela multiplicidade genética em determinada área. É o que dá vida ao planeta em que vivemos. Mas no campo comunicacional esse verbete ainda não existe, pelo menos não na 2ª edição do Dicionário da Comunicação, organizado por Ciro Marcondes Filho. Na prática, poucas iniciativas podem se dizer partidárias da diversidade. Mas as que existem já podem ser consideradas promissoras. As redes sociais foram apropriadas por grupos marginalizados e a consequência é que discussões sobre raça, feminismo e LGBT+ não ficam mais restritos à militância. Esses temas reverberam por todos os lados.
Profissionais e empresas de comunicação perceberam que chegou a hora de rever discursos e passaram a incluir diferentes corpos, cores, identificação de gênero e sexualidade. A diversidade ganhou as campanhas e produções. O caminho até uma real diversidade é longo e repleto de obstáculos. Mas a primeira e primordial etapa, que inclui a percepção de que esse assunto não pode mais ser ignorado, foi concluída. É impossível fazer comunicação, hoje em dia, sem pensar de forma aberta, ampla e justa. Nas próximas páginas, mostramos como a diversidade tem sido encarada pelos quatro principais ramos da nossa “ecologia”.
PUBLICIDADE
Representatividade lucrativa
Por Paula Calçade
Maquiagens para pele clara, xampus e condicionadores para cabelos lisos, cervejas para homens e roupas da moda para pessoas magras. A publicidade investiu nesses tipos denominados de “perfis”, mas pode chamá-los de estereótipos. As coisas, no entanto, parecem estar mudando e pela força dos consumidores. O Dossiê BrandLab, do Google, apontou que, em cinco anos, os brasileiros pesquisaram duas vezes mais sobre a diversidade na internet. Apenas no Youtube, 600 mil novos vídeos sobre racismo, feminismo e temática LGBT foram postados em 2017 no país. As marcas não iam querer ficar de fora dessa tendência.
Maria Guimarães, uma das fundadoras da agência de consultoria sobre gênero 65/10, lembra que há dois anos o incômodo sobre propagandas “limitadas e preconceituosas” contra as mulheres havia se tornado uma questão de fato. A publicidade só teria a lucrar se aproveitasse essa vontade de superar os estereótipos e promover uma evolução que acompanhasse a emancipação feminina. “São marcas e agências que querem falar diretamente com as consumidoras e estão assimilando muito bem as mudanças”, garante. A consultoria 65/10 atuou no filme promocional “Meninas Fortes”, da Nescau, que mostra como o esporte pode empoderar. Na peça de 1 minuto e 30 segundos, o lema é “assim como o esporte faz do menino homem, faz da menina mulher”. A marca e as idealizadoras ganharam o prêmio Cannes Lions 2017, maior premiação mundial sobre criatividade na propaganda. “Representatividade dá bons retornos, principalmente nas redes sociais”, aponta.
No início de 2017, a marca Skol da cervejaria Ambev assumiu a “importância de evoluir”. Pôsteres desenhados por ilustradoras e filme promocional com elenco de pessoas negras foram exemplos da mudança de tom. “Já faz algum tempo que algumas imagens do passado não nos representam mais”, publicou nas suas redes sociais. Era uma resposta à série de críticas que recebeu por propagandas de dois anos antes. Na ocasião, a marca sofreu represália por campanhas que sugeriam às pessoas deixarem o “não” em casa no carnaval. Em uma guinada de 180 graus, a campanha publicitária “Skol: redondo é sair do seu quadrado” tirou de cenas as mulheres de biquíni e shorts curtos e começaram a aparecer pessoas de diferentes cores e casais homossexuais. A diversidade virou um tema. “O momento é agora, e algumas marcas estão alinhadas com essa fala”, diz Camila Cornelsen, diretora de fotografia que participou da montagem da nova publicidade da Skol.
Mas, segundo Camila, as agências brasileiras ainda precisam contratar mais mulheres e negros para compor suas equipes. As criações publicitárias podem adquirir mais representatividade e apresentar trabalhos plurais estáveis para ir além dos discursos. “Tomar ações internas são essenciais para que as marcas não caiam em oportunismos”, alerta. Para ela, um exemplo de incongruência de discurso foi a Coca-Cola, que recebeu críticas por ter um comitê da diversidade, mas que em uma foto publicada pela empresa só estampava homens brancos nesse departamento.
Faculdades de Publicidade e Propaganda também estão preocupadas com a questão. A Universidade Federal do Rio Grande do Norte, por exemplo, elaborou um Manual da Diversidade, em um projeto compartilhado entre os alunos. O objetivo da cartilha é “concluir sobre as melhores formas de tratar a representatividade dos gordos (as), sujeitos LGBT+, negros (as), idosos (as), indígenas e das pessoas com deficiência nas campanhas publicitárias”. Na Cásper Líbero, o coordenador Joubert Brito afirma que os novos alunos demandam cada vez mais conteúdos que respeitam a diversidade e pedem por trabalhos e discussões em aula.
JORNALISMO
Por mais diversidade dentro das redações
Por Pedro Garcia
“Coisa de preto” virou hashtag, trending topics mundial, dezenas de colunas na mídia, moções de repúdio em legislativos do país e o afastamento do apresentador William Waack do Jornal da Globo. Jornalista veterano, Waack viu ainda seu programa Painel, no ar havia 17 anos, ser extinto pela Globonews. O episódio foi revelador para mostrar algo que redações costumam jogar panos quentes: o racismo entre quem produz notícia. Com equipes formadas predominantemente por brancos, os principais veículos de comunicação têm cada vez mais procurado a pluralidade e a diversidade nas pautas, mas não a exercitam internamente.
O Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (Geema) da Universidade Estadual do Rio de Janeiro descobriu que 1% dos colunistas do Estadão são negros, na Folha de S.Paulo esse número vai para 4% e em O Globo fica em 9%. Nos telejornais, é raro ver apresentadores negros. Há consequências evidentes quando uma maioria da população não tem voz dentro dos veículos. O mesmo Geema constatou, em outra pesquisa, que em 2015 pautas de raça e gênero estavam muito longe de ser representativas nas revistas de bordo da Gol, TAM, Azul e Avianca. Nas últimas décadas, a clientela de passageiros se tornou mais diversa, mas esses não podem se ver nas publicações.
A editora de treinamento da Folha de São Paulo, Suzana Singer, conta que no período de aprendizado de novos jornalistas pautas ligadas às minorias são abordadas junto a outras questões éticas. No manual de redação de 2018, a temática terá um destaque maior. Suzana relata que a equipe da Folha acredita que a pluralidade nas redações seja benéfica para o jornal, porém não adota nenhuma cota na contratação de funcionários.
Em junho de 2017, a Escola de Jornalismo da Énois, que ensina a profissão para jovens da periferia, publicou o Manual de Diversidade no Jornalismo. Nele, a Énois defende a pluralidade de vozes nos veículos midiáticos. A ideia surgiu enquanto a Énois produzia um guia gastronômico da periferia e percebeu a falta de representatividade. O manual traz dicas para processos seletivos de contratação de jornalistas, diversificação de fontes nas reportagens e diálogo com a sociedade.
Questões raciais e cotas, identidades de gênero, novas configurações familiares, direitos sexuais, direitos reprodutivos, trabalho sexual são temas cada vez mais assíduos no jornalismo. A redemocratização ampliou o número de vozes no país, mas foi a internet que alavancou de vez esse debate. Se antes a mídia tradicional era a principal responsável pela circulação do discurso, hoje qualquer cidadão é um produtor de informação. O resultado é que não param de surgir veículos de nicho ou preocupados com essa temática (como o Jornalistas Livres, que teve como um de seus colaboradores o homem trans Léo Moreira Sá). Em julho de 2015, a jornalista Maju Coutinho, formada pela Cásper Líbero, foi alvo de comentários racistas na internet. Por causa da repercussão nas redes sociais, os apresentadores do Jornal Nacional, William Bonner e Renata Vasconcelos, saíram em defesa de Maju.
A revista digital AzMina nasceu, em setembro de 2015, da vontade de romper com a crença da neutralidade jornalística, pois com ela essa vem a ideia de que não importa quem está contando a história. Para Letícia Bahia, diretora de relações da publicação, a grande mídia trata as minorias como se elas fossem universais, quando nem todas as pessoas pertencentes a um grupo são iguais ou têm vivências parecidas. É preciso fazer recortes. Mas Letícia não deixa de fazer uma autocrítica: a direção da publicação ainda é formada só por mulheres brancas.
RÁDIO, TV E INTERNET
Luz, Câmera e Diversidade!
Por Pedro Garcia
A representação de LGBT+ nas produções audiovisuais vem crescendo. Nas emissoras da TV aberta nos Estados Unidos, 4,8% dos personagens são homossexuais, bissexuais ou transgêneros, segundo a Aliança Gay e Lésbica contra a Difamação (GLAAD, sigla em inglês). É pouco, mas ao mesmo tempo um recorde dos últimos 12 anos.
No Brasil, as novelas da Rede Globo apresentaram de 1970 (primeira aparição de um personagem homossexual) até abril de 2017 um total de 126 personagens identificados como LGBT+. Desde 2010, apenas uma telenovela do horário nobre (das 19 às 22 horas) não teve a representação. O aumento de aparições, contudo, ainda esbarra na qualidade. A jornalista Fernanda Nascimento, autora do livro Bicha (Nem Tão) Má e doutoranda em estudos de gênero pela Universidade Federal de Santa Catarina, constatou que de 126 personagens LGBT+ retratados nas novelas globais, 62 eram homens homossexuais e apenas 4 de todos eles eram negros.
Já houve personagens travestis e transexuais nas novelas. Ziembinski fez Stanislava, a primeira travesti das telenovelas, em O Bofe, no ano de 1973. De lá para cá, outros atores encararam o desafio: Ney Latorraca (Anabela, em Um Sonho a Mais, 1985), Jandir Ferrari (Gina, em Deus nos Acuda, de 1992), Floriano Peixoto (Sarita, de Explode Coração, 1995), Matheus Nachtergaele (Cintura Fina, em Hilda Furacão, 1998) e Miguel Magno (Dona Roma, de A Lua me Disse, 2005). O primeiro personagem identificado como homem trans surgiu na novela A Força do Querer, de 2017. Mas a pouca visibilidade não é exclusiva do Brasil. Entre as produções norte-americanas para televisão aberta e fechada, além dos sites de streaming, existem 16 personagens trans, segundo a GLAAD. Em 2016, havia 7.
“A mídia está em consonância com a sociedade e, dentro do segmento LGBT+, os homens gays são os mais privilegiados”, explica Fernanda. Os temas tratados nas produções seguem os padrões existentes na sociedade. Ao se falar de relacionamento, sempre é um casal monogâmico. A pesquisadora pondera que, apesar de existirem falhas a serem contornadas na representatividade, as novelas são assistidas por diversas classes sociais e, ao abrirem a discussão, contribuíram para que o debate chegasse à população.
A representação de negros nas telenovelas da Rede Globo também é pífia. De 1995 a 2014 apenas 10% das tramas foram protagonizadas por atores pretos ou pardos, segundo estudo do Grupo de Estudos Multidisciplinares de Ações Afirmativas, vinculado à Universidade Estadual do Rio de Janeiro.
O Observatório Brasil da Igualdade de Gênero, iniciativa da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República, era bastante ativo até maio de 2016. Naquele mês, foi publicado seu último boletim, que revela como o crescente setor audiovisual brasileiro ainda é um território dominado por homens. A partir de dados de 2015 do Anuário Estatístico do Cinema Brasileiro, descobre-se que 19% dos 2.606 produtos audiovisuais foram dirigidos por mulheres e 23% tiveram uma roteirista. Obedece a uma tendência mundial: na Alemanha, o índice é de 22% dos filmes dirigidos por mulheres, na China são 16,7% e na Índia apenas 9,1%.
Na Cásper Líbero, os alunos do curso de Rádio, TV e Internet são estimulados a abordarem assuntos ligados a diversidade. Desde o primeiro ano, alunos produzem documentários com temática relacionada a algum segmento à margem da sociedade e a criação de filmes publicitários, jingles e spots que devem lidar com algum tema social. O coordenador do curso, Roberto D’Ugo, ressalta a necessidade de formar um nova geração de comunicadores que não se contenta em reproduzir preconceitos e estereótipos, mas que busca fugir deles e realizar uma representação midiática mais digna.
RELAÇÕES PÚBLICAS
Mudanças que começam de dentro
Por Rafaela Artero
Ricardo Sales, pesquisador na Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, concluiu um mestrado sobre a questão da diversidade LGBT+ no ambiente corporativo. Ele levou a pesquisa para o mercado de trabalho com a Mais Diversidade, consultoria que auxilia a transição das empresas. Por exemplo, Ricardo ajudou no caso de uma funcionária trans que revelou para a empresa sua identidade. “Estamos cuidando para que tudo ocorra de maneira natural e respeitosa, para ela sobretudo”, explica.
Desde 2016, a Mais Diversidade trabalha para a Skol e participou do reposicionamento da marca no mercado. Ele explica que a mudança culminou em melhorar o diálogo com o público: “Hoje falamos de temas que tocam diretamente aos jovens, levantando discussões sobre preconceitos e as barreiras que impedem a conexão entre as pessoas”, afirma.
As empresas não são os únicos lugares em que um profissional de relações públicas pode atuar. De acordo com a professora e coordenadora do curso de Relações Públicas da Cásper Líbero, Patrícia Salvatori, existem duas formas para atuar com a inclusão social. Além do corporativo, há o engajamento por parte dos profissionais em trabalhos com ONGs e outras associações. Neste segmento, os profissionais da área trabalham para melhorar a comunicação das organizações para que consigam receber atenção para a sua causa. Esta área humanizada da comunicação recebe atenção e está sendo incluída na grade do curso. Ela cita o exemplo de um projeto realizado pelos alunos em que, durante um ano, trabalham para ONGs.
Apesar dessas iniciativas, o quadro geral ainda se mantém insatisfatório. Um exemplo é a exposição “Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira”, que continha obras com as temáticas LGBT+. Protestos nas redes sociais do Movimento Brasil Livre e grupos religiosos repudiavam a mostra. A primeira posição do Santander Cultural, no dia 8 de setembro de 2017, foi a de apoio, afirmando que “justamente para nos fazer refletir sobre os desafios que devemos enfrentar em relação a questões de gênero, diversidade, violência entre outros”. Mas dois dias depois, a instituição voltou atrás e cancelou a exposição. Em nota ao público, vinda com um pedido de desculpas, os organizadores disseram que acreditavam que algumas obras “desrespeitam símbolos, crenças e pessoas, o que não está em linha com a nossa visão de mundo”.
A polêmica levantou a discussão sobre como as empresas se apropriam dessas identidades para conquistar o público consumidor. Guilherme de Moraes, pesquisador do programa de pós-graduação da Faculdade Cásper Líbero, analisou as campanhas publicitárias de empresas como Skol, Rede Globo e Bradesco para saber se os discursos eram, de fato, incorporados na cultura corporativa. Guilherme encontrou três possibilidades. A primeira é que algumas marcas incorporam o discurso na publicidade, mas não internalizam a posição no ambiente de trabalho. Mesmo assim, em números as iniciativas não correspondem à diversidade da sociedade. A segunda é que a empresa se apropriou dos valores e se relaciona com o público, tornando-se uma aliada. A última é que, mesmo cientes da cultura corporativa, não há um posicionamento. Para ele, as campanhas que trazem a diversidade são uma questão de justiça. “São poucas as iniciativas de comunicação interna e de recursos humanos focadas na criação de um ambiente de trabalho mais amigável para a diversidade”, diz.
Na última edição da RP Week, que ocorreu em julho de 2017 na Cásper Líbero, uma das mesas-redondas foi sobre diversidade. Um dos pontos de consenso entre os debatedores é que o RP como um “profissional da empatia” tem enorme responsabilidade para a construção do diálogo e o aprendizado das diferenças étnica, de gênero e de sexualidade. “Diversidade não pode ser só uma palavra que está na mídia e que vai perder a força com o passar do tempo”, alertou Ariane Feijó, co-fundadora do coletivo Todo Mundo Precisa de Um RP.